domingo, 11 de outubro de 2009

Muribeca, na Bienal

Foto: Marcelo De Marco

Lixo? Lixo serve pra tudo. A gente encontra a mobília da casa, cadeira pra pôr uns pregos e ajeitar, sentar. Lixo pra poder ter sofá, costurado, cama, colchão. Até televisão. É a vida da gente o lixão. E por que é que agora querem tirar ele da gente? O que é que eu vou dizer pras crianças? Que não tem mais brinquedo? Que acabou o calçado? Que não tem mais história, livro, desenho? E o meu marido, o que vai fazer? Nada? Como ele vai viver sem as garrafas, sem as latas, sem as caixas? Vai perambular pela rua, roubar pra comer? E o que eu vou cozinhar agora? Onde vou procurar tomate, alho, cebola? Com que dinheiro vou fazer sopa, vou fazer caldo, vou inventar farofa?

Fale, fale. Explique o que é que a gente vai fazer da vida? O que a gente vai fazer da vida? Não pense que é fácil. Nem remédio pra dor de cabeça eu tenho. Como vou me curar quando me der uma dor no estômago, uma coceira, uma caganeira? Vá, me fale, me diga, me aconselhe. Onde vou encontrar tanto remédio bom? E esparadrapo e band-aid e seringa?

O povo do governo devia pensar três vezes antes de fazer isso com chefe de família. Vai ver que eles tão de olho nessa merda aqui. Nesse terreno. Vai ver que eles perderam alguma coisa. É. Se perderam, a gente acha. A gente cata. A gente encontra. Até bilhete de loteria, lembro, teve gente que achou. Vai ver que é isso, coisa da Caixa Econômica. Vai ver que é isso, descobriram que lixo dá lucro, que pode dar sorte, que é luxo, que lixo tem valor.

Por exemplo, onde a gente vai morar, é? Onde a gente vai morar? Aqueles barracos, tudo ali em volta do lixão, quem é que vai levantar? Você, o governador? Não. Esse negócio de prometer casa que a gente não pode pagar é balela, é conversa pra boi morto. Eles jogam a gente é num esgoto. Pr’onde vão os coitados desses urubus? A cachorra, o cachorro?

Você precisa ver. Isso tudo aqui é uma festa. Os meninos, as meninas naquele alvoroço, pulando em cima de arroz, feijão. Ajudando a escolher. A gente já conhece o que é bom de longe, só pela cara do caminhão. Tem uns que vêm direto de supermercado, açougue. Que dia na vida a gente vai conseguir carne tão barata? Bisteca, filé, chã-de-dentro - o moço tá servido? A moça?

Os motoristas já conhecem a gente. Têm uns que até guardam com eles a melhor parte. É coisa muito boa, desperdiçada. Tanto povo que compra o que não gasta - roupa nova, véu, grinalda. Minha filha já vestiu um vestido de noiva, até a aliança a gente encontrou aqui, num corpo. É. Vem parar muito homem morto, muito criminoso. A gente já tá acostumado. Quase toda semana o camburão da polícia deixa seu lixo aqui, depositado. Balas, revólver 38. A gente não tem medo, moço. A gente é só ficar calado.

Agora, o que deu na cabeça desse povo? A gente nunca deu trabalho. A gente não quer nada deles que não esteja aqui jogado, rasgado, atirado. A gente não quer outra coisa senão esse lixão pra viver. Esse lixão para morrer, ser enterrado. Pra criar os nossos filhos, ensinar o nosso ofício, dar de comer. Pra continuar na graça de Nosso Senhor Jesus Cristo. Não faltar brinquedo, comida, trabalho.

Não, eles nunca vão tirar a gente deste lixão. Tenho fé em Deus, com a ajuda de Deus eles nunca vão tirar a gente deste lixo. Eles dizem que sim, que vão. Mas não acredito. Eles nunca vão conseguir tirar a gente deste paraíso.
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"Muribeca" é um dos contos do livro "Angu de Sangue", publicado pela Ateliê Editorial no ano 2000.

Marcelino Freire nasceu em 20 de março de 1967 na cidade de Sertânia, Sertão de Pernambuco. Vive em São Paulo desde 1991. É autor de EraOdito (Aforismos, 2ª edição, 2002), Angu de Sangue (Contos, 2000) e BaléRalé (Contos, 2003) publicados pela Ateliê Editorial. Em 2002, idealizou e editou a Coleção 5 Minutinhos, inaugurando com ela o selo eraOdito editOra. É um dos editores da PS:SP, revista de prosa lançada em maio de 2003, e um dos contistas em destaque nas antologias Geração 90 (2001) e Os Transgressores (2003), publicadas pela Boitempo. Publicou também, pela Editora Record, Contos Negreiros (2005), obra que lhe rendeu o Prêmio Jabuti de Literatura, categoria Contos, edição 2006. Seu livro mais recente é Rasif: mar que arrebenta (Contos, 2008), também pela Record.

5 comentários:

  1. Diga menino!!!

    Adoooro Marcelino Freire, embora só conheça Balé Ralé e Contos Negreiros. Neste último encontrei das melhores realizações do conto brasileiro. Não conhecia esse do lixo, simplesmente um tapa na cara da sociedade civil, das autoridades, na verdade, um tapa na cara da humanidade mesmo.

    Miró. Ô figuraça é o Miró. Conheci a figura em Natal, em 2007. Performático com força, é motivo de inspiração para o Grupo Casarão de Poesia, do qual sou parte.

    E você rapaz? Anda me lendo em silêncio, é? Faz isso não. Escandalize quando passa, senão como teria vindo aqui? Essa nave de bytes mil loucos onde que habitamos é um turbilhão de palavras, imagens, vidas, que é difícil aterrisar diante de paisagens tão instigantes, como um lixão, uma janela, um incêndio.

    Voltarei sempre!

    Beijos...

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  2. Oi, Marcelo!
    Gostei de te encontrar aqui ao lado de Marcelino e Miró. VIm conhecer tua casa e agradecer a presença lá no Inscrições, fiquei feliz.
    Ando de viagem, de recesso nos blogs, mas volto e aí te aviso também.
    Beijo e até breve.

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  3. Oi professor é Gabriel Costa da 6ªB!
    Muito interesante mas quando Marcelino Freire afirma que:
    Lixo serve pra tudo
    Eu não concordei totalmente pois
    Os restos do lixo orgânico não pode servir para nada e eles terminam nos aterros sanitários e ali ficam expostos a céu aberto.

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  4. bom gostei do texto!é um pouco extenso assim como suas provas rsrsr...,vou ser sincera,ñ sou muito de fazer leitura,mais esse texto é bastante interessante!
    muitas pessoas vivem do lixo,isso é uma verdade triste!

    O BICHO

    Vi ontem um bicho
    Na imundíce do pátio
    Catando comida entre os detritos

    Quando achava alguma coisa,
    Não examinava nem cheirava:
    Engolia com voracidade.

    O bicho não era um cão,
    Não era um gato,
    Não era um rato.

    O bicho, meu Deus, era um homem.

    (Manuel Bandeira)

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