sábado, 3 de agosto de 2013

A 'minha' cidade


Sei muito pouco sobre a minha cidade. E hoje é seu aniversário. Desaponta-me não falar nada em data tão festiva: 368 carnavais é muita coisa! Por isso acordei com a disposição de escrever algumas linhas, ainda que tais linhas não mereçam nada mais e além que o crédito, comumente concedido a quem é forasteiro.

Não sei o quanto de folclore há na história da minha cidade, nem sei mesmo se é o caso de se pensá-la como um causo. Mas reza a lenda que um bravo povo dessa terra afugentou um exército inteiro. Pelo menos é o que narram dois ou três livros que guardo na estante.

Na iminência de ver o território ocupado por colonos holandeses, abnegados guerreiros da minha cidade (nativos e agregados  como eu) não quiseram se subordinar a países baixos. Consideram-se, por certo, superiores.

O fato é que portugueses e brasileiros que aqui viviam (ou detinham algum tipo de interesse – seguramente, financeiro) botaram a tropa neerlandesa para correr, quebraram o maior pau. Pense num cacete! Mandaram-na às cucuias de Amsterdam.

Vitoriosos  vitorienses e neo-vitorienses tinham, agora em mente, um audacioso e visionário plano: instituir uma constituição própria que disciplinasse, a médio-longo prazo, deveres e direitos nos limites da cidade.

A carta magna costurada a nanquim (contendo verdadeiros mandamentos) aos habitantes 'daquela' remota terra, com os devidos descontos (porque aí já se vão algumas centenas de anos), dizia sobre política: esta arte da dissimulação (conclusão de Descartes que eu endosso).

O artigo da Constituição da Republiqueta da Terra das Tabocas dispunha que todo povo tinha o direito imprescritível e inalienável à autodeterminação, mediante às suas demandas e exigências.

Mas uma emenda, aprovada séculos mais tarde, identificando a pouca objetividade do texto, acrescentou que o povo tem, mesmo, todo direito, desde que mantenha algum grau de parentesco ou fidelidade com o líder político em vigência, ou frequente a mesma  que ele  confraria.

O artigo determinava a criação de uma câmara alta, autônoma e que emergisse legitimamente através de critérios técnicos e do voto distrital livre e direto (nesta ordem), configurando-se em representação deliberativa do povo, junto ao Estado (das Tabocas).

No entanto, recentemente, mediante o glorioso instrumento da Medida Provisória, a MP nº 40 - votada às pressas por um legislativo entorpecido (porque foram tantos os mimos), o governante da época conseguiu tornar sem efeito o artigo supracitado.

O dirigente que o sucedeu, com um ar democrático surpreendente, logo decidiu reescrever o tal artigo, dando-lhe roupagem linguística mais sofisticada. E mediante a Medida Provisória nº 55 foi soberanamente taxativo: "Que o poder legislativo seja ‘joystick’ do Executivo municipal!"

Honestamente, é o que pouco sei sobre a minha cidade.

Sim..., mas acabo de me lembrar, também, de que de lá pra cá riachos e nascentes foram transformados em esgoto, inclusive para acomodar os rejeitos industriais  em nome do 'desenvolvimento'. Um desenvolvimento que não chega aos bairros mais pobres, às pessoas que mais precisam.

O rio mais importante da minha cidade foi assoreado e teve sua margem invadida por aterros, terraplanagens e edificações, cuja propriedade é – no mínimo  questionável. Por outro lado, há quem invista tempo discutido a desnecessária etimologia de seu nome (se Itapacurá ou Tapacurá, é irrelevante). Eu quero é tomar banho de rio! Eu quero é pescar! Utopia? Éh... eu gosto de utopias.

As construções sem controle tomaram conta das calçadas. Não há asfalto nem praça nas periferias. Quem nesses lugares moram, alheios a tudo, vivem a indigência e ignoram a semântica da palavra ‘direito’. As associações de moradores servem apenas para arregimentar eleitores.

Quando nos deslocamos em automóveis, enfrentamos motos e motociclistas inescrupulosos, buracos, semáforos desordenados, sinalização deficitária, caminhões que descarregam mercadorias em plena luz do dia, ferro velho estacionado e o carro do lixo que, sem o menor planejamento, nunca sai à noite – horário de menor fluxo.

Quem usa ônibus (meu Deus!) vive a síndrome da 'lata de sardinha', e corre riscos de perder a vida em coletivos malcheirosos, malcuidados – guiados por condutores despreparados e que, sequer, respeitam um cronograma de viagens preestabelecido – entre outras coisas porque ele  o tal cronograma  não existe e porque não há, no poder público (leia-se: Prefeitura), ninguém a, sobre isto, ocupar-se.

Tem mais: há sempre lâmpada de poste que não acende (mas tem poste plantado no meio da rua!), os esgotos das casas perseguem o meio-fio escancarado. Em muitos lugares, formam poças que se espalham: moradias de ratos, baratas e enxames de moscas.

Tudo isto representa bem o cheiro de anos de abandono e de indiferença.

Quando chove é lama na certa.

Se faz sol, som alto e cerveja.

Citando o poeta Everardo Norões, e sem nenhum receio de ser classificado como preconceituoso, não tiro palavra, nem ponho: "a música brega do vizinho violenta nossos ouvidos e as crianças vagam pelas esquinas num exercício de vadiagem que as levará ao crack e ao crime".

Os 'playboys', e até gente (imaginem!adulta, crias de uma mentalidade falso-burguesa, exibem-se com seus veículos financiados em 72 meses. Com o som alto e a mala aberta ostentam uma pobreza que os condena a não refletir.

Enquanto isso a política de prioridade do prefeito é investir em guardas engomados a desfilar na principal avenida como num exercício ridículo de figurantes para programas de TV.

Eu não conheço a minha cidade. E, honestamente, nem sei se gostaria mesmo de conhecê-la. Melhor que ela continue a viver em mim em silêncio, em pleno anonimato, porque é assim que gostaria de nela viver.

Mas confesso que hoje eu acordei com a gota!

Chega a hora que a gente precisa botar para fora aquilo engasgado, sabe?! E não importa se vão entender mal o meu resmungo, o meu desaforo, a minha malcriação. Sim..., porque é assim que a pseudo-elite (política, econômica e intelectual) entende. Não admite ser contrariada.

Éh... e faz tempo, viu, que eu notei isso.

Já notei também que desqualificar a fala de quem se insurge, de quem se insubordina ao 'establishment' é a especialidade dos coronéis e de seus capangas no território baldio que se tornou a minha cidade. Contudo, justiça seja feita, antes de desqualificar, eles chegam junto, conversam, oferecem um cargozinho, um empreguinho, e se não tiver cuidado, eles cooptam.

Aí ninguém repercute. Aí ninguém comenta. Aí ninguém fala. E todos os anos (como num teatro) se reúnem, em confraria, e realizam o esquete de sempre: fogueteiam, hasteiam a bandeira, cantam um hino, falam umas coisas – qualquer coisa. Confraternizam-se – não se sabe o quê, nem por quê.

Aqueles que se consideram mais 'sabidos' repetem a mesma conversa que ouviram contar. Falam de uma tal 'batalha' em que chegaram batendo, caindo de pau na tropa holandesa. E já cansados de seus próprios blablablás dão uma trégua, intercalam com coqueteizinhos mal dormidos: um canudinho aqui, um pastelzinho folheado acolá... e comem  e como comem! E bebem  bebem muito! 

Mas a verdadeira história da cidade ninguém conta, a verdadeira história da cidade ninguém quer contar.