Sei muito pouco sobre a minha cidade. E
hoje é seu aniversário. Desaponta-me não falar nada em data tão festiva:
368 carnavais é muita coisa! Por isso acordei com a disposição de escrever
algumas linhas, ainda que tais linhas não mereçam nada mais e além que o
crédito, comumente concedido a quem é forasteiro.
Não sei o quanto de folclore há na história da minha cidade, nem sei mesmo se é o caso de se pensá-la como um causo. Mas reza a lenda que um bravo povo dessa
terra afugentou um exército inteiro. Pelo menos é o que narram dois ou três
livros que guardo na estante.
Na iminência de ver o território
ocupado por colonos holandeses, abnegados guerreiros da minha cidade (nativos e
agregados – como eu) não quiseram se subordinar a países baixos. Consideram-se,
por certo, superiores.
O fato é que portugueses e brasileiros
que aqui viviam (ou detinham algum tipo de interesse – seguramente, financeiro)
botaram a tropa neerlandesa para correr, quebraram o maior pau. Pense num cacete! Mandaram-na às
cucuias de Amsterdam.
Vitoriosos – vitorienses e
neo-vitorienses tinham, agora em mente, um audacioso e visionário plano:
instituir uma constituição própria que disciplinasse, a médio-longo prazo,
deveres e direitos nos limites da cidade.
A carta magna costurada a nanquim (contendo
verdadeiros mandamentos) aos habitantes 'daquela' remota terra, com os devidos
descontos (porque aí já se vão algumas centenas de anos), dizia sobre política:
esta arte da dissimulação (conclusão de Descartes que eu endosso).
O artigo 1º da Constituição da
Republiqueta da Terra das Tabocas dispunha que todo povo tinha o direito
imprescritível e inalienável à autodeterminação, mediante às suas demandas e
exigências.
Mas uma emenda, aprovada séculos mais
tarde, identificando a pouca objetividade do texto, acrescentou que o povo tem,
mesmo, todo direito, desde que mantenha algum grau de parentesco ou fidelidade
com o líder político em vigência, ou frequente a mesma – que ele – confraria.
O artigo 2º determinava a criação de
uma câmara alta, autônoma e que emergisse legitimamente através de critérios
técnicos e do voto distrital livre e direto (nesta ordem), configurando-se em
representação deliberativa do povo, junto ao Estado (das Tabocas).
No entanto, recentemente, mediante o
glorioso instrumento da Medida Provisória, a MP nº 40 - votada às pressas por
um legislativo entorpecido (porque foram tantos os mimos), o governante da
época conseguiu tornar sem efeito o artigo supracitado.
O dirigente que o sucedeu, com um ar
democrático surpreendente, logo decidiu reescrever o tal artigo, dando-lhe
roupagem linguística mais sofisticada. E mediante a Medida Provisória nº 55 foi
soberanamente taxativo: "Que o poder legislativo seja ‘joystick’ do
Executivo municipal!"
Honestamente, é o que pouco sei sobre a
minha cidade.
Sim..., mas acabo de me lembrar, também, de que de lá pra cá riachos e nascentes foram transformados em esgoto, inclusive para acomodar os
rejeitos industriais – em nome do 'desenvolvimento'. Um desenvolvimento que não
chega aos bairros mais pobres, às pessoas que mais precisam.
O rio mais importante da minha cidade
foi assoreado e teve sua margem invadida por aterros, terraplanagens e
edificações, cuja propriedade é – no mínimo – questionável. Por outro lado, há quem invista
tempo discutido a desnecessária etimologia de seu nome (se Itapacurá ou Tapacurá, é irrelevante). Eu quero é tomar banho de rio! Eu quero é pescar! Utopia? Éh... eu gosto de utopias.
As construções sem controle tomaram
conta das calçadas. Não há asfalto nem praça nas periferias. Quem nesses
lugares moram, alheios a tudo, vivem a indigência e ignoram a semântica da
palavra ‘direito’. As associações de moradores servem apenas para arregimentar
eleitores.
Quando nos deslocamos em automóveis,
enfrentamos motos e motociclistas inescrupulosos, buracos, semáforos
desordenados, sinalização deficitária, caminhões que descarregam mercadorias em
plena luz do dia, ferro velho estacionado e o carro do lixo que, sem o menor
planejamento, nunca sai à noite – horário de menor fluxo.
Quem usa ônibus (meu Deus!) vive a
síndrome da 'lata de sardinha', e corre riscos de perder a vida em coletivos malcheirosos,
malcuidados – guiados por condutores despreparados e que, sequer, respeitam um cronograma
de viagens preestabelecido – entre outras coisas porque ele – o tal cronograma – não existe e porque
não há, no poder público (leia-se: Prefeitura), ninguém a, sobre isto, ocupar-se.
Tem mais: há sempre lâmpada de poste
que não acende (mas tem poste plantado no meio da rua!), os esgotos das casas
perseguem o meio-fio escancarado. Em muitos lugares, formam poças que se
espalham: moradias de ratos, baratas e enxames de moscas.
Tudo isto representa bem o cheiro de
anos de abandono e de indiferença.
Quando chove é lama na certa.
Se faz sol, som alto e cerveja.
Citando o poeta Everardo Norões, e sem nenhum receio de ser classificado como preconceituoso, não tiro palavra, nem ponho: "a música brega do vizinho violenta
nossos ouvidos e as crianças vagam pelas esquinas num exercício de vadiagem que
as levará ao crack e ao crime".
Os 'playboys', e até gente (imaginem!) adulta, crias de uma mentalidade
falso-burguesa, exibem-se com seus veículos financiados em 72 meses. Com o som
alto e a mala aberta ostentam uma pobreza que os condena a não refletir.
Enquanto isso a política de prioridade
do prefeito é investir em guardas engomados a desfilar na principal avenida
como num exercício ridículo de figurantes para programas de TV.
Eu não conheço a minha cidade. E,
honestamente, nem sei se gostaria mesmo de conhecê-la. Melhor que ela continue
a viver em mim em silêncio, em pleno anonimato, porque é assim que gostaria de
nela viver.
Mas confesso que hoje eu acordei com a
gota!
Chega a hora que a gente precisa botar
para fora aquilo engasgado, sabe?! E não importa se vão entender mal o meu
resmungo, o meu desaforo, a minha malcriação. Sim..., porque é assim que a
pseudo-elite (política, econômica e intelectual) entende. Não admite ser
contrariada.
Éh... e faz tempo, viu, que eu notei
isso.
Já notei também que desqualificar a
fala de quem se insurge, de quem se insubordina ao 'establishment' é a
especialidade dos coronéis e de seus capangas no território baldio que se tornou a minha
cidade. Contudo, justiça seja feita, antes de desqualificar, eles chegam junto,
conversam, oferecem um cargozinho, um empreguinho, e se não
tiver cuidado, eles cooptam.
Aí ninguém repercute. Aí ninguém
comenta. Aí ninguém fala. E todos os anos (como num teatro) se reúnem, em
confraria, e realizam o esquete de sempre: fogueteiam, hasteiam a bandeira,
cantam um hino, falam umas coisas – qualquer coisa. Confraternizam-se – não se
sabe o quê, nem por quê.
Aqueles que se consideram mais 'sabidos'
repetem a mesma conversa que ouviram contar. Falam de uma tal 'batalha' em que
chegaram batendo, caindo de pau na tropa holandesa. E já cansados de seus próprios blablablás dão uma trégua, intercalam com coqueteizinhos mal dormidos: um
canudinho aqui, um pastelzinho folheado acolá... e comem – e como comem! E
bebem – bebem muito!
Mas a verdadeira história da cidade
ninguém conta, a verdadeira história da cidade ninguém quer contar.
marcelo muito bom a sua forma de "ironizar" os desmandos desta terra que, a bem da verdade nunca cedeu homens á luta em Tabocas, pois não há registro de que vitorienses tenham lutado na mesma.
ResponderExcluirInclusive não havia àquela época nem senso de brasilidade, tanto è que o Padre Vieira ficou incumbido de negociar boa parte do territorio nordestino junto a Holanda! Aqui primeiro surge o Estado para depois surgir a nação. As capitanias são um exemplo disso! Abraços!
manoel CArlos
Meu Deus! Todos nesta cidade deveriam ler (ou ouvir) este texto! Mas, quantos o entenderiam? Talvez fosse apenas lançar pérolas aos porcos. Penso que, se ouvissem estas palavras no discurso apaixonado de um verdadeiro idealista, a indagação fervente que emergiria das profundezas do coração da quase unanimidade seria: "Sim... mas o que é que eu vou ganhar para votar em você?"
ResponderExcluirUm Aluno.